domingo, 18 de setembro de 2011

EPISTEMOLOGIA NO ENSINO-APRENDIZAGEM DA ARTE

Este artigo propõe algumas reflexões acerca das questões que permeiam a epistemologia, relacionando-a ao ensino e à aprendizagem da arte no contexto da escola. Para tanto, faz-se necessário pensar no real significado dos termos arte, ensino, aprendizagem, socialização, epistemologia e democratização, para sinalizarmos algumas considerações, como: É possível ensinar arte? Que aspectos estão abordando nesse ensino: o da arte num contexto artístico e universal ou, num sentido mais específico, o do ambiente escolar?
A arte produzida pelos artistas e a função da arte na escola são objetos de estudos diferenciados, embora estejam intimamente entrelaçados. Neste momento, nosso estudo balizador vai centrar-se no contexto educacional, porém apropriando-se de alguns elementos tratados na arte de um modo geral, como imaginação, criação, poética, leitura e fruição - elementos básicos para a materialização da arte e o exercício artístico na escola formal. Quando nos apropriamos de concepções filosóficas e metodológicas, estamos também definindo e traduzindo a nossa forma de ver, sentir e estar no mundo. O que significa então, para nós, o ato de ensinar e aprender? É uma ação impositiva e autoritária ou dialógica e democrática? Nesse sentido, podemos transcender a prática de ensinar e aprender para o exercício da democracia e da socialização de conhecimentos, sejam estes de ordem técnica, de conteúdo, de conceitos e/ou da arte. Há que se questionar sobre a possibilidade de o ensino-aprendizagem da arte no contexto escolar ser um veículo de democracia e liberdade aos meninos e meninas com os quais convivemos. Direta ou indiretamente somos responsáveis pelo modo como eles aprendem a sentir e estar no mundo, pois somos também nós, no contexto da escola, como profissionais da educação, que os ensinamos a ver ou não ver, ser ou não ser, estar ou passar pelo mundo. Nossa intenção, aqui, é contribuir com essas reflexões, para que cada vez mais estejamos conscientes e coerentes com nosso papel de profissionais na área de atuação pela qual optamos: ensinar e aprender arte. Desenvolvendo o pensamento ao buscar o significado da palavra epistemologia, encontramos: "Estudo do grau de certeza do conhecimento científico em seus diversos ramos, especialmente para apreciar seu valor para o espírito humano "(BUENO, 1996). Gostaríamos aqui de problematizar algumas questões, como: O conhecimento apropriado de um objeto de estudo, de um objeto quotidiano ou mesmo de um objeto artístico é sempre variável de pessoa para pessoa e depende também do tempo-espaço histórico e cultural, de interesses e desafios. Portanto, a relatividade é uma constante no exercício de aprender e ensinar. Aprendemos sobre aquilo que nos fala mais intimamente, e ensinamos a partir dos fragmentos que pensamos ser mais importantes naquele momento para aquelas pessoas. A apreciação na epistemologia invoca os valores humanos; isso significa que nessa trama envolvem-se elementos como conceito, opinião e análise. Então, se buscarmos os significados para além da etimologia, pode pensar nesses conceitos como algo a ser ressignificado. Mas será que falar em epistemologia da arte é adequado? Ou a arte, por si só, já é suficiente como expressão, sem necessitar do conhecimento? A arte pode ser definida como: "Conjunto de preceitos para a perfeita execução de qualquer coisa. Artifício, ofício, profissão; indústria; astúcia; habilidade; travessura; magia; feitiçaria; [...] complexo de regras e processos para a produção de um efeito estético determinado" (BUENO, 1986). Os conceitos de arte e de ensino-aprendizagem da arte têm-se transformado ao longo do processo histórico e, nesse percurso, ambos passaram e passam por momentos, muitas vezes, semelhantes. Nos períodos que antecederam e sucederam a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais, os paradigmas conceituais da arte e da educação mudaram consideravelmente. Hoje, entendemos por "perfeita execução de qualquer coisa" o objeto artístico que lida com a criação, a pesquisa, os conceitos, o real e o imaginário. Não buscamos pura e simplesmente a perfeição na representação mimética, mas na presentificação, na reelaboração e na autonomia da arte. Se ontem se preocupava apenas com a apreciação, o presente envolve-se com o estranhamento, com a co-autoria das pessoas na interação através da leitura. "tudo que é perceptível é passível de leitura". Assim, tudo o que é lido precisa de alguém para saboreá-lo, compreendê-lo. No jogo entre a arte, o seu criador e aquele que a absorve estão às relações que desse jogo provém, a fruição. Esses elementos são também tratados no contexto escolar. Vale como experiência humana fazer arte, pensar a arte e transformar-se pela arte. "a experiência acontece também pelo erro e que este é mais construtivo que a verdade-constatação". Ou seja, a verdade da aparência primeira, da idéia explícita. Mas essa busca, essa percepção do que se vê é uma ação espontânea? A questão persiste: arte se ensina e se aprende? Elliot Eisner diz que "a arte nos faz empregar nossas mais sutis formas de percepção e contribui para o desenvolvimento de algumas de nossas mais complexas habilidades cognitivas" (apud BARBOSA, 1997, p. 90). Eisner aponta especialmente para a importância da cognição, dessa habilidade do pensamento tão pouco compreendida no ensino modernista e bastante difundida na educação da arte, no contexto contemporâneo e para além desse, na pós-modernidade. Saber desvelar o que na arte está contido, experimentando o ato de ler, decodificar a gramática visual, corporal e sonora, transpô-la para o mundo real e imagético é acima de tudo compreender os signos do mundo presente. É também aprender arte e na arte, apropriando-se tanto dos aspectos cognitivos como dos sensíveis, pois "as obras de arte falam o inefável, cultivam a sensibilidade, para que o sutil possa ser visto o secreto desvelado. Em resumo, a arte nos ajuda a conhecer o que não podemos articular." São palavras de Eisner (apud BARBOSA, 1997, p. 90).
A escola pode estar tratando do espírito investigativo, mental, introspectivo e emocional, elementos que dão sustentação à arte. Entretanto, poderíamos ainda nos perguntar: De que forma podemos desenvolver tais elementos relacionando-os ao ato de ensinar e aprender? Eisner, novamente, nos aponta algumas pistas, quando elenca quatro grandes eixos para o ensino da arte: a produção, a crítica, a história e a estética da arte. A produção de arte ajuda a criança a pensar inteligentemente sobre a criação de imagens visuais. Ela pode criar imagens que tenham força expressiva, coerência, discernimento e inventividade. A crítica de arte desenvolve sua habilidade para ver, ao invés de simplesmente olhar, as qualidades que constituem o mundo visual - um mundo que inclui, e excede trabalhos formais de arte. A história da arte ajuda as crianças a entender alguma coisa do tempo e lugar, pelos quais todos os trabalhos artísticos se situam: nenhuma forma de arte existe em um vácuo descontextualizado. A estética é o mais novo componente curricular de Arte-Educação - compõe as bases teóricas que permitem o julgamento da qualidade daquilo que se vê. Argumentamos a partir de nossos julgamentos de valor, e gostamos de fazê-lo. Entender a variedade de critérios que podem ser aplicados às obras de arte e refletir sobre os significados do conceito arte é o objetivo principal da estética (apud BARBOSA, 1998, p. 83).
Vale aqui lembrar que esses elementos, apesar de suas especificidades, caminham paralelamente, envolvidos num tempo histórico-cultural. Isto é, cada conceito discutido, cada produção realizada, cada obra de arte pensada e cada momento histórico abordado no contexto da escola deverão fazer parte do conjunto de ações quotidianas e frente a um pensamento contemporâneo. Pensar a partir do nosso tempo sobre outros tempos é fundamental no exercício temporal, mental, relacional e no diálogo silencioso e expressivo nosso com outros tempos a partir deste tempo, que é onde vivemos e percebemos todas as coisas. Segundo Robert William Ott, "a arte pode assumir diversos significados em suas várias dimensões, mas como conhecimento proporciona meios para a compreensão do pensamento e das expressões de uma cultura" (apud BARBOSA, 1998, p. 111). Ott é enfático quando lança o conhecimento em arte como fundamento básico para a compreensão cultural. Saber das transformações artísticas e culturais, dos elementos visuais, sonoros e corporais que marcam e registram a força de uma época, de pensamentos e ações é valioso em nosso processo de aprendizagem e em nossa experiência humana. Da mesma forma, poderíamos citar o quanto o ato expressivo é vital para a criança, o jovem e o adulto, seja por meio corporal, plástico ou sonoro. Contudo, poucos são os espaços e as oportunidades. Nesse caso, a escola pode contribuir para que haja expressão, criação e reflexão. Portanto, entendemos que aprender arte e sobre arte é um direito de toda criança, todo jovem e adulto, pois o homem, como ser pensante, necessita de criar outras verdades, outros mundos, reais e imagéticos, que só a arte na sua essência pode propiciar.
Últimas considerações
Ao professor de arte cabe o papel de desafiar e não afirmar com verdades absolutas. Se antes dizíamos: "isto é uma obra de arte", hoje, o momento histórico nos leva a perguntar: "pode isto ser uma obra de arte? Por quê? "é importante fazer com que o silêncio fale e o erro seja verdade" rompe com qualquer sinalização finita e absoluta. Mas, quando abordamos essas questões relacionadas ao contexto educacional, nos vem sempre a mesma indagação: Se arte significa magia, feitiçaria, efeito estético, como ensiná-la? Se ensinar origina-se da idéia de "instruir; doutrinar; educar; estimular e dirigir a transformação de (o homem); castigar; adestrar" (BUENO, 1986), diríamos que não há como ensiná-la. Se, por outro lado, projetarmos o conceito de educar em "estimular; desenvolver e orientar as aptidões do indivíduo, de acordo com os ideais de uma sociedade determinada; aperfeiçoar e desenvolver as faculdades físicas; intelectuais e morais de; ensinar; instruir; domesticar; adestrar" (BUENO, 1986), diríamos que os menos afortunados - que não tiveram a sorte de nascer com aptidões para as habilidades artísticas - estão em desvantagem comparados aos privilegiados acolhidos pelo dom. Estes seriam os que comungam dos padrões estéticos determinados e impostos pela sociedade, em nosso caso, mais especificamente a ocidental. Ora, no contexto escolar, podemos identificar os privilegiados como aqueles que estão dentro das normas e regras de um padrão de beleza do professor, do diretor, da comunidade e do senso comum. Os que se afastam ou que se diferenciam na autonomia são aqueles que não possuem habilidades, não sabem fazer arte, não conhecem os conceitos universais...Na escola, quando meninos e meninas dizem não saber fazer, estão se referindo ao fazer estereotipado e não ao fazer que envolve sentir e perceber o mundo e todos os elementos que o compõem. E somos nós, educadores, que podemos ou não formar meninos e meninas que reproduzem estereótipos ou meninos e meninas que experienciam a leitura, a poética e a fruição. Os dicionários definem o educador como instrutor, professor, mestre, pedagogo. E o educando como colegial, aluno, discípulo. Optamos por compreender o educador como aquele que media conhecimentos, de forma dialógica e democrática, e não aquele que transmite conhecimentos por imposição e autoritarismo. Como educando, entendemos aquele que se apropria dos saberes e o traduz na transformação e materialização de algo que se interiorizou e transbordou para o outro e para o mundo. Aprendizado quer dizer a ação de aprender; tempo durante o qual se aprende. Cada menino e menina têm o seu tempo próprio e único, que deve ser respeitado e compreendido como ação, seja no mais profundo silêncio ou no movimento mais estranho que nos possa parecer.
Aprender pode significar uma ação que parte da mediação. Isso sinaliza que o aprendizado não é um ato solitário, isolado do aluno. É o professor que media seus conhecimentos; são também os colegas, o livro, a imagem, a música, a dança, o teatro, o cinema, as mídias... E, ao mesmo tempo em que é um ato coletivo, é antagônico, porque também é individual. Individual porque vemos sob o nosso ponto de vista, como percebemos e sentimos; somos do mundo na sua universalidade, mas únicos na forma como nos inserimos nele, como respondemos, questionamos e pensamos sobre, para e com ele, incluindo tudo e todos que dele fazem parte. Então, se buscamos as concepções filosóficas que balizam nossas ações, podemos dizer que, ao nos apropriarmos de palavras como arte, ensino e aprendizagem, estamos sempre assumindo determinados papéis. Somos instrutores ou mediadores? Autoritários ou democráticos? Somos os donos de verdades absolutas ou questionamos, investigamos, estudamos, aprendemos? Afinal, o que queremos de verdade? Refletindo sobre a possibilidade da democratização do ensino e buscando novamente a sua significação, deparamo-nos com o seguinte: "democratizar é tornar democrata ou democrático; dar feição democrática a; popularizar" (BUENO, 1986). Então, seria interessante pensar que, talvez, o único espaço que a maioria dos meninos e meninas possam ter para fazer arte, ler apropriando-se do objeto artístico, pensar e fruir arte, seja a escola. Se, diante desse fato, a escola e a sociedade que a constrói em cada momento histórico entendem a arte como componente curricular, com conteúdos, metodologias e filosofia própria, como pode afirmar com tanta certeza que não aprendemos a fazer, pensar, ler e fruir arte? Mesmo o artista, que materializa o seu modo de ver e perceber as coisas, as pessoas e o mundo, está sempre em processo de aprendizagem, com a vida, com as pessoas, com os objetos, com a natureza, com os conflitos, com os erros, com a história... E nós, professores, meninos e meninas sempre têm algo a aprender com e sobre a arte, sobre o nosso tempo, os outros tempos, a vida... Assim, em cada momento existe alguém que ensina e alguém que aprende, que se apropria, interioriza, materializa e socializa. Por isso, compreendemos que a socialização da arte pode ser uma forma de democracia. Voltando à busca do significado das palavras, socialização é o "ato de pôr em sociedade; extensão de vantagens particulares à sociedade interna; desenvolvimento do sentimento coletivo e do espírito de cooperação nos indivíduos associados; processo de integração mais intensa dos indivíduos no grupo " (BUENO, 1986). Não desejamos que o ensino-aprendizagem da arte na escola seja uma ação rígida e de transmissão, apenas. Saber nomes de artistas, datas importantes, estilos e acontecimentos históricos, desvinculados do contexto, é menosprezar a capacidade dos meninos e meninas de relacionar fatos, objetos, ações, histórias e significados com aquilo que pensam e compreendem. Uma postura que articula conhecimento e prazer de aprender, de ler, de fazer, de fruir, pode nos levar a resultados mais construtivos, pois somente o que o sensível percebe realmente faz sentido, o restante é apenas decodificado pela memória, e a tendência é desaparecer com o tempo. Nós acreditamos numa educação em arte para todo o tempo e para além do tempo. Estar envolvido com todos esses elementos, ao mesmo tempo em que nos tornamos co-autores do meio histórico e cultural, pode nos indicar um encontro significativo entre o prazer da liberdade e a angústia de compreender que o saber é infinito, pois nunca sabemos o suficiente de todas as coisas... A intenção deste estudo foi dialogar sobre a reflexão epistemológica da arte, discutindo se é possível ensinar e aprender arte. Não somos nós que vamos fechar finitamente essa questão, pois, como já dissemos, as respostas estarão sempre comprometidas com o que somos e com o que pensamos. Importa-nos mais, neste momento, ressaltar a contribuição do ensino da arte no contexto da escola, para que meninos e meninas desenvolvam suas capacidades emocional, sensível, perceptiva e cognitiva, visando sempre levá-los a ser e estar cada vez mais humanos.


Referências bibliográficas
PILLOTTO, Silvia Sell Duarte. Epistemologia no ensino-aprendizagem da arte: uma questão de reflexão. In: PILLOTTO, Silvia Sell Duarte; SCHRAMM, Marilene de Lima Körting (Org.). Reflexões sobre o ensino das artes. Joinville: Ed. Univille, 2001.

BARBOSA, Ana Mãe (org.); EISNER, A.; OTT, R. W. Arte-educação; leitura no subsolo. São Paulo: Cortez, 1998.
BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário escolar da língua portuguesa. 11.ed. Rio de Janeiro: FAE, 1986
MARTINS, Mirian C (org.) Didática do ensino da arte. A língua do mundo: poetizar, fruir e conhecer arte. São Paulo: FTD, 1998.
McLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. Tradução de Bebel O. Schaefer. São Paulo: Cortez, 1997.
SILVA, Tomaz Tadeu. (org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995.
ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Tradução de Ernani F. Rosa. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

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